sexta-feira, julho 14, 2006

Ela trazia a corpo voluptuosamente apertado nas curvas de uma saia demasiado vermelha e uns labios demasiado pintados. Chamava a atenção e sabia-o, fazia por isso. Andava com a confiança de quem coleciona olhares com a indiferença de uma menina que apanha pedras na praia para logo as devolver ao mar. Sofia tinha inveja, queria ter aquele corpo demasiado grande para a camisa, queria ter os seios perigosamente expostos no decote cavado, queria sentar-se a lêr um livro no banco da estação de comboios e fingir que não repara que ali ela era o centro dos comentários sussurrados dos adolescentes, das fantasias dos executivos e da libido dos velhos. Mas não podia. As dores roubaram-lhe a juventude, o tempo fugiu-lhe demasiado depressa, jogava xadrez como ninguem, mas não se soube defender da vida. Tímida, num vestido castanho largo até aos pés, dobrava-se a custo para apanhar um livro que lhe caira da pilha que trazia. Ali, na multidão, Sofia não era ninguem...

25 comentários:

polegar disse...

os dias sussurravam-lhe sempre gotas de solidão... até que um dia lhe caiu um livro ao chão e alguém foi mais rápido que as suas dores.
"interessantíssimo, este título... recomenda?"

MPR disse...

Timidamente murmurou qualquer coisa, estendendo a mão para que lhe devolvesse o livro.
"Não percebi..." - e o jovem que tinha o livro na mão, cabelo revolto, solto, olhar profundo e sorriso suave, dobrou-se como se quisesse ouvir melhor.
Ela parou... não sabia como reagir, tinha-se esquecido que na altura em que as costas não estavam torcidas como uma tira de papel, em que aquela doença ainda não lhe tinha roubado a auto-estima, o espírito, a desenvoltura, nesse tempo longíquo em que pedia aos amigos que lhe tocassem no cabelo demasiado encrespado e o desenrolassem com cuidado, nesses dias falava e ria alto, piscava o olho a um desconhecido de passagem, e perdia horas a conversar enroscada nos sofás de amigos até altas horas da madrugada.
Mas agora olhava para o espelho e admirava-se como é que ele tinha espaço para conter o seu reflexo. Sofria, sozinha, em silêncio, e comia... muito... embaraçosamente muito. Sofia já não se conhecia, já não se lembrava de quem tinha sido outrora e agora ficava paralizada perante uma palavra de um rapaz alto, jovem, e porque não dizê-lo... bonito.

polegar disse...

e os olhos... olhos mágicos que tinha aquele rapaz. por um momento evadiu-se ali, no reflexo. viu-se mulher, nua, de cabelo em desalinho, acabada de sair da cama, suada, em frente ao espelho. ainda não tinha rugas no rosto, os sulcos profundos como um charco onde se atiram pedras. e tocava-se, admirava-se.
depois acordou. afastou os olhos daquele reflexo perturbante, daquela leitura das almas e passados. ele continuava expectante, não parecia com intenção de se afastar, não havia naquele rosto, naquele corpo, quaisquer vestígios de apenas uma conversa de circunstância de quem apanha um livro do chão a uma velha. mas porquê? o meu cabelo está em desalinho, as minhas formas perderam-se nos tempos e nas roupas largas, não vê os riscos fundos que a tristeza gravou na minha cara, neste corpo enferrujado? sou um carro na sucata. que me queres?

MPR disse...

Pedro era um jovem idealista. Tinha viajado o mundo mais do que o normal para alguem da sua idade. Era alto, muito magro, com uma estranha beleza invulgar, nada em si era comum e ele apreciava isso. Sabia deixar uma impressão em quem cruzasse o seu caminho, era terno delicado, eloquente, era capaz de discorrer sobre quase qualquer tema com a segurança de um perito, sem no entanto nunca parecer presunçoso ou arrogante. Era uma das suas maiores qualidades e uma das suas maiores armas, o poder dizer quase tudo sem que lho levassem a peito, usava varias vezes de uma ironia ou de um sarcasmo crítico, que o próprio visado aceitava sem insulto. Muitas vezes lhe tinham dito serem os seus olhos o truque, aqueles olhos quentes... diziam-lhe aliás ser mais belo do que alguma vez se julgou, os elogios rebatia-os com um sorriso desarmante ou uma tirada completamente fora de sentido que deixava o seu interlocutor sem resposta. Era sem dúvida um homem interessante, numa altura que as pessoas da sua idade não são mais do que crianças presunçosas.
Reparou em Sofia do outro lado da estação, nas suas feições que, debaixo do cabelo desalinhado, dos vincos do rosto, apesar das formas demasiado redondas e descuidadas, possuiam para ele uma certa força, uma certa nobreza e brilho. Orgulhava-se disso, de ser capaz de ver nas pessoas para além do óbvio, das roupas, das modas, das cirurgias plásticas, das inúteis conversas de circustância. E Sofia, que devia ter dez anos a menos do que aparentava, chamou-lhe a atenção. Aproximou-se curioso:"Sente-se com 60, aparenta 50 e não tem de certeza um dia a mais que 40!" - pensou. Gostava de teorizar e fantasiar sobre desconhecidos que passavam, criava vidas inteiras na sua cabeça, enquanto se encostava a um poste ou se sentava num degrau na rua. Mas, sem notar, aproximou-se de Sofia, não se limitou a fitá-la de longe. Quando lhe viu um livro escorregar da mão, imediatamente apanhou-o. Não sabia porque tinha feito aquilo, mas a verdade é que apetecia-lhe conhecer aquela pessoa que tinha - podia jurar - muito mais interesse do que aparentava. Perguntou-lhe pelo livro, ela no entanto, tal bicho do mato assustado, sussurou algo incompreensivel e fitou-o desconfiada. No entanto ele colocou o seu sorriso caracteristico e voltou a insistir: "Não percebi..." - de uma coisa tinha a certeza, ela atraia-o e não ia desistir tão facilmente...

polegar disse...

sem sequer se aperceber, ela levou a mão ao cabelo. sentiu-a húmida e passou-a pelo vestido, ali mesmo, colado à anca. apercebeu-se dos dois gestos e cerrou o punho na lombada com pretextos de ajeitar o livro.
ele notou-lhe as hesitações. mulher. bicho. que histórias estariam ali, naqueles olhos profundos, para lhe contar. e que súbita sensação lasciva lhe provocara o banal gesto de uma mulher de olhos velhos a limpar a mão no tecido. a anca, curvilínea como sempre num corpo feminino, arredondara-se um pouco mais. e tinha umas mãos bonitas. no gesto dos dedos revelara-se toda a delicadeza que teimava em esconder no resto do corpo. ela sorriu-lhe. entreabiu os lábios para lhe responder. e antes do som, antes do sopro, ele sentiu vontade de um beijo.

MPR disse...

"É..." - Sofia gaguejou, e clareou a garganta antes de continuar a responder. Pedro tinha ouvido "Sim..." como se fosse uma resposta a uma hipotética pergunta sobre o beijo. Quase imperceptivelmente aproximou-se para a beijar e ela continuou. "...quer dizer deve ser. Ainda não o li, mas foi-me muito recomendado. É de autor checo ainda meio desconhecido." Ele parou... ficou confuso por um breve momento, ela falava de livros, ele sonhava com beijos, trocados em publico com uma perfeita desconhecida. O descontrolo momentâneo apanhou-o desprevinido. Não estava habituado a sentir-se assim, quase arrebatado por uma mulher que, todos concordariam, era vulgar de aspecto, de pose, de tudo... excepto uma pequena aura que parecia rodea-la e apenas ele reconhecia.
Sofia percebeu que ele estava parado, como se estivesse distante. "Ele estava a ser simpático, não queria realmente uma resposta!" - a ideia assolou-a como uma certeza irrevogável. As costas doeram-lhe. Envergonhada por ter pensado que alguem com aquele rosto tão viciante podia ter realmente algum interesse no que ela tinha para dizer, agarrou no livro, soltou um "obrigada" apressado e virou-se para se sentar no banco. Pedro ficou sem reacção enquanto ela se afastava. Pela primeira vez, apesar de não o reconhecer em voz alta, não tinha conseguido prender alguem por quem se tinha interessado. Ele aliás, não tinha exactamente a certeza do que é que se estava naquele instante a passar...

polegar disse...

ela sentou-se com dificuldade. baixou os olhos e fixou a capa do livro com uma atenção quase obsessiva. ficou vidrada nas cores pardas, no relevo das letras, sem as absorver. inspirou com força. e então sentiu. um nó na garganta. que estranho... tossiu, a ver se passava. o ar mal lhe chegava aos pulmões.
ele observava-a de longe. viu-lhe o esgar surpreendido de esforço. os olhos demasiado fixos no livro, no colo. nas costas, esculpida pelo tempo, uma curva de derrota.
"que raio, que se passa, será que estou a ficar doente? que inchaço é este na garganta? porque é que não consigo...?"
do peito à garganta, da garganta aos olhos, dos olhos ao colo. uma lágrima. desfez-se em mil pedaços, deixando apenas uma mancha minúscula escura na saia. ela fixou-a, incrédula.
ao fundo, ele pensou "quero...".
o comboio rosnou ao fundo.
"quero ver-te nua"

MPR disse...

A aflição assomou-lhe a face, começou a ficar ruborizada para além do normal. A tosse prendia-se-lhe no corpo, nas costas, o ar teimosamente recusava-se a entrar. Pedro acordou do seu devaneio para a ver em aflição. Apesar dos espasmos sufocantes que lhe percorriam o corpo ninguem parecia ligar. Ela foi-se deixando descair pelo banco, como se buscasse um pouco de alivio mais baixo, mais rente ao chão. Cairam-lhe da mão com estrondo os livros, fazendo com que meia duzia de cabeças se virassem. Ela estava deitada sobre o pavimento, o ronco surdo da sua respiração era abafada pelo ruido do comboio. Pedro correu na sua direcção, ajoelhou-se ao pé dela e viu que não respirava. Começou a gritar por ajuda. Outro homem que dizia ser médico aproximou-se rapidamente e num gesto abriu-lhe o vestido para a ajudar a respirar, expondo os seus flácidos seios fartos. Pedro sentiu-se excitado ao vê-la assim, mas o sentimento desvaneceu-se perante o estado preocupante de Sofia. O médico agarrou no telemovel, chamou uma ambulância e, olhando para Pedro perguntou: "É da familia?" - ele instintivamente respondeu - "Sou..." - "Ajude-me a afastar esta gente daqui, ela precisa de ar." Assim fez, começou a empurrar as pessoas que se tinham juntado para vêr o cenário. Sofia agonizava cada vez mais... sem conseguir ouvir nada, por entre os pés de uma multidão que se aglomerava à sua volta, ela viu a mulher de saia vermelha a entrar para o comboio.

polegar disse...

o ar não entrava. o peso no peito. as mãos tremiam. dos olhos lágrimas que não sentia brotarem, caíam-lhe descontroladas pela face, fixando-se em poças salgadas nas pequenas rugas do seu já duplo queixo. entravam-lhe nas orelhas e tapavam-na dos sons, dos passos, dos gritos à sua volta. tudo desaparecia num filme mudo. sentiu o mundo às voltas. não era ela, era o mundo. tudo rodava doentiamente ao ritmo daquele estonteante balançar de anca da outra, a de vermelho, do menear do passo, vermelho. tudo ondulava. tudo era vermelho e ondulava. sentiu vontade da escuridão, de algo que lhe arrancasse da vista aquele sague todo, aquele fogo que não parava de se mexer. quis ter unhas compridas e total posse dos seus braços, numa última força de vontade, como no cinema, só para arrancar os seus próprios olhos. para que todas aquelas curvas, as contracurvas, torneadas, flamejantes parassem de se exibir perante o seu corpo seco e murcho, no passeio. e ela a assistir.
o ar, falta-me o ar!

MPR disse...

Negro! Por um instante tudo se cobriu de uma negritude completa, e finalmente o descanso. Quando acordou, momentos depois parecia-lhe, Sofia não reconheceu o que a rodeava... A pouco e pouco apercebeu-se que se encontrava numa cama que não era a sua, num quarto branco, sóbrio, com uma máscara sobre o rosto. Olhou em volta e viu um vulto. Fez um esforço por falar mas a voz prendeu-se-lhe na garganta. Piscou os olhos e reconheceu aquele rapaz tão insistente, aquele que a tinha deixado sem saber o que fazer...
Onde estou? - pensou - E o que porque está ele aqui?
Descansa - disse ele - Não tentes falar, agora precisas é de repouso...

polegar disse...

- grande susto que me pregaste... mas sabes... ainda bem que as coisas aconteceram assim. espero não me estar a impor, não me conheces nem nada. mas eu precisava de estar ao pé de ti.
a mão dele estava quente, muito quente. derretiam-lhe como cera a pele pálida dos dedos. ela quis mais uma vez falar. nada. apenas um estranho som rouco.
- shhhh... acalma-te. tens sede ou alguma coisa? responde só com a cabeça.
como uma menina pequena, ela acenou negativamente, olhos muito abertos a sugar a irrealidade daquela presença. com medo de, ao fechá-los, ele desaparecer. os dedos dele, tão grandes, cobriam-lhe agora o rosto. o seu toque - coisa distante, o toque de um homem na sua pele - arrepiava-a.
- é verdade... não cheguei a apresentar-me. sou o Pedro.
o sorriso franco e suave, o pescoço viril. ali, a poucos centímetros. pensou que lhe chegava, apesar da máscara, o seu cheiro.
- estava a pensar: preferes que eu te leia o teu livro ou te conte a história da minha vida?
ela ia abrir a boca.
- ai, desculpa. sossega. então, sim ou não ao livro?
ela abanou de novo a cabeça.
- queres ouvir a história da minha vida? - sorriu, um brilho enigmático nos olhos, a voz adensou-se num sussurro quente.
- a minha vida começou quando vi uma mulher de vestido castanho na estação de comboios...

polegar disse...
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pinky disse...

lindoooooooooooo.....e que tal contarem a história da vida dele?

MPR disse...

Sofia sorriu - Parvo... - sussurrou.
Pedro sorriu tambem, sentiu-se próximo dela... Estava há várias horas naquele hospital, disse ser seu marido para que o não mandassem embora. Teve que conter o riso quando o médico veio falar com ele num tom grave e lhe disse que Sofia tinha que descansar, que não se podia exaltar. Ele sentiu-se responsável por ela. Agora ali, a vê-la sorrir, foi como se voltasse a respirar, o alivio da primeira lufada de ar.
Sofia ficou de repente muito branca. Olhou para ele com ar sério e, como se acordasse de um sonho, perguntou-lhe: "Mas quem és tu? Que fazes aqui? Porque é que não me deixas?"
Pedro sorriu e passou-lhe a mão pelos cabelos, como se fosse na verdade seu marido. Sofia não pareceu gostar, ficou irrequieta, incomodada: "Por favor sai..."
Pedro parou de sorrir. Sofia insistiu:"Sai."
Pedro levantou-se ainda incrédulo, não esperava aquela reacção, mas, lentamente, começou a aperceber-se que realmente não conhecia aquela pessoa. Começou a sentir-se ridiculo por ali estar, por alimentar uma fantasia como se fosse uma criança.
"Sai!"
Atabalhoadamente, sem uma palavra, Pedro saiu do quarto do hospital, fechando a porta suavemente atrás de si...

polegar disse...

saiu. saiu, claro. tinha mais é que sair. não quero cá aqueles olhos. não quero brilhos estranhos que me despem. não quero reflexos de mim que não são reais. aqueles olhos fazem-me ver coisas. onde é que já se viu uns olhos que nos põem nus?! um espelho que nos despe? quero mais é mandar em quem me despe. só eu. só as minhas mãos. são frias, sim, mas são as minhas mãos. eu sei que não me arranho. ele saiu. saiu e que não volte.
- não voltes, ouviste?!
eu não impressiono os homens. eu não impressiono ninguém. foda-se, nem a mim me impressiono. agora aqueles sorrisos e aqueles brilhos e as minhas mamas à mostra assim? nos olhos de outra pessoa? não me quero ver nua. não quero. quero saber o que estou a fazer, quero lá agora um tipo que me despe. não. eu é que sei. sempre soube. lá vai o tempo de me despir. agora quero é desenhar os meus dias como sempre fiz. assim sei. assim estou bem. sou eu. mais ninguém. destabilizar-me? para quê? aquela da saia vermelha é que era boa. toda boa. vem-me despir a mim? como se eu fosse rija? como se me rebolasse? devia ser preso. pervertido, gosta de velhas! gosta de gozar com uma pessoa! agora acalma-te, Sofia. respira. tens de ficar boa. o Max está sozinho em casa. tens de voltar para casa depressa. calma. não tarda estás com os teus livros, os teus chás, a tua vida... esquecer os olhos. eles não voltam. podes dormir sossegada... mas... porque é que tenho vontade de chorar?

MPR disse...

"Chorar sim, chorar por mim, por aqueles olhos que me despiam, chorar por ter sentido ao fim de tanto tempo o toque de um homem." Chorar... apenas, assim, desamparadamente, numa cama quente e desconhecida, chorar sem pudor, chorar como há muito a sua alma chorava... Sofia, chorava, como sempre... só...
Naquele instante a porta do quarto entreabriu-se mas ninguem entrou. Sofia tentou limpar as lágrimas para que ninguem notasse a sua solidão. A porta, ficou por momentos com uma frincha aberta, como se alguem escutasse à entrada. Sofia chamou: quem está aí? - ninguem respondeu. Pouco depois a porta fechou-se. Sofia ficou intrigada, sentia como se uma presença estivesse consigo no quarto, como se estivessem a presenti-la, a observá-la à distância. Foi então que reparou em dois olhos ao fundo da cama. Dois olhos esguios e belos, com duas orelhas muito peludas. Sentiu uma pequena pressão nos cobertores. Um gato, um pequeno gato listrado saltou para cima de sua cama. Olhou-a por breves instantes curioso... Depois, descontraidamente, rodou duas vezes sobre si mesmo e deitou-se no seu colo, adormecendo quase de imediato. Sofia ficou estupefacta com a presença de um gato num quarto de hospital, deu-lhe uma festa de mansinho e recomeçou a chorar, contendo os soluços para o não acordar...

polegar disse...

o embalar ritmado que o ronronar do gato proporcionava deixou-lhe, a certa altura, os pés dormentes. mas não reparou. afogava-se nas suas lágrimas. engolia o sal que a secava por dentro e voltava a sair e voltava a engolir. toda a água que retinha no corpo saía, gota a gota, sulcando-lhe a pele. esvaía-se em choro convulsivo, lágrimas, ranho, baba e gemidos... esqueceu-se de tentar não acordar o gato, que permaneceu impassível, mirando-a com os seus intensos olhos sonolentos. de olhos embaciados pelo desgosto via aquela única mancha escura no seu colo no meio de tanta brancura falsamente asséptica do hospital. o seu vazio. a sua vida. asséptica para não haver caos. asséptica para não haver sentimentos. na enxurrada escorriam pensamentos cada vez mais escurecidos, a corrente arrancava agora os detritos secos impregnados nas paredes da sua alma. Sofia esvaía-se em dor. a dor vicia. a partir de certo ponto não se consegue parar. é um dilúvio negro espesso que entorpece, se agarra aos pés e braços e fios de cabelo e numa pressão suave vai encurralando o peito, entranhando-se nas unhas e na pele, entrando pelos olhos até os escurecer também. é uma espécie de conforto, a solidão da auto-piedade. Sofia consigo no altar da sua dor. deixou-se flutuar até que os dedos tocaram algo mais frio que as suas mãos...

MPR disse...

Na penumbra do quarto um vulto desenhava-se em contra-luz. Na projecção da ténue luz filtrada pelos cortinados Sofia viu uma mão que se retraia. Como um desenho tosco, uma figura humana, distorcida, com os braços excessivamente longos, as mãos ao nivel dos joelhos, observava-a. Aquelas mãos, aquelas mãos enormes tinham-lhe tocado. Sofia arrepiou-se completamente, fez um esforço para conter o vómito, enquanto suores frios lhe escorriam pela face, pelo corpo... Estava em pânico, o gato porém, impassivel, sonolento, dormitava...

polegar disse...

quis gritar. chamar pelo homem que recusara como louca há pouco. Pedro. Pedro, volta. traz as tuas mãos quentes, aconchega-me, consola-me, engana-me com os teus olhos! protege-me!
quis gritar mas apenas um ronco borbulhou na máscara afogada em lágrimas. o estranho ente mantinha-se a uma respiração de distância.
estarei louca? enlouqueci, é isso! vejo coisas. gatos e sombras frias de mortos ou coisa que o valha! nada disto existe. ou então morri. há hospitais em que levam os gatos para o pé dos moribundos. faz sentido. na morte afinal não há túneis e luzes ao fundo, é no quarto de hospital em que morremos que ficamos a habitar com sombras dos infernos! não. ainda estou na estação de comboios, à espera do das 18:22. adormeci a ler o livro.
os dedos tremiam enquanto lhe rolavam os pensamentos e as lágrimas. aquela coisa continuava ali. arrancou de supetão a máscara molhada para afastar o seu assobio constante. o elástico partiu-se e fez-lhe um vergão no rosto. a breve convulsão da pele provou-lhe que a dor física existia ali. e o ser estranho das mãos frias continuava, escuro, silencioso, tão perto, enquanto a bochecha lhe latejava. tentou levantar-se. um bloqueio das pernas, um espasmo de dor, os pés dormentes, estatelou-se no chão com todo o seu peso, num baque surdo de carne. no peito algo estalou.
do outro lado da cama a sombra moveu-se na exacta proporção da sua queda, Sofia viu como que a repetição dos seus movimentos em câmara lenta e sem som. caída numa posição anormal, jazia na cerâmica fria do chão encarando do outro lado da cama o estranho sombrio, agora também deitado, que, ela sentia sem lhe encontrar os olhos, a fixava calmamente.
o gato miou.

MPR disse...

Quem és tu??? Que me queres??? Que voltas de dor me queres dar?? Não chega já? Não basta que sofra sempre? Não basta que não me consiga mexer? Que me sinta só, irremediavelmente só? Não basta que me fuja a vida, todos os dias, por entre os dedos? Que quanto mais força faço para a agarrar mais ela se dilui e evapora, mais ela escorre como areia? Não basta?? Quem és tu??? Largam-me! Deixa-me em paz! Deixa-me por um momento sozinha, por um só instante comigo mesma, sem as dúvidas, sem as incertezas, sem este martelar constante no peito que me corta a respiração, a vida, o sonho! Deixa-me sonhar! Deixa-me amar!!! Pelo amor de Deus deixa-me ser amada!!! Deixa-me em paz... deixa-me... deixa-me... deixa-me...
Sofia perde lentamente a consciência no chão daquele quarto que se tornou frio, gélido, distante, lembra-se antes de sucumbir ao negro do gato a mordiscar-lhe os dedos e de um sorriso, um terrivel sorriso alvo naquele rosto negro...

polegar disse...

- ... ois... três... acorde.
a tontura, o corpo entorpecido completamente abandonado numa superfície que não reconheceu logo. a dificuldade em abrir os olhos, colados, pesados, sensíveis a qualquer rasgo de luz. apesar da penumbra em volta, doeu acordar. e ainda mais os longos momentos que Sofia levou a aperceber-se de onde estava.
- muito bem, Sofia, muito bem. como se sente?
ainda não conseguia virar o pescoço na direcção da voz quente que se lhe dirigia. tudo demasiado pesado e trôpego.
- fizemos grandes avanços hoje, minha querida.
a voz sorria.
- deixe-me ajudá-la a endireitar um bocadinho.
as mãos, duas mãos grandes e quentes. uma na curva da cintura, outra que lhe abarcava as costas. uma suave pressão, outra tontura com o levantar do tronco. fechou os olhos antes de conseguir habituá-los à luz.
- tome, beba. falou muito, deve estar com a garganta seca. ai, Sofia... esta sessão encheu-me de orgulho...
um copo de encontro aos seus dedos. vidro fresco e leve. água. simples bálsamo para os lábios soldados. para a língua áspera. para a garganta arranhada e amarga. sentia os olhos inchados, um peso na cabeça, uma falta de força, como se... como se... tivesse chorado a vida toda. tentou abrir os olhos, mais uma vez. focar o rosto da voz que reconhecia mas ainda não sabia de onde...
- muito orgulho... mesmo. Sofia...

MPR disse...

Pestanejou... A voz ecoava pela sala como se tivesse próxima e longínqua ao mesmo tempo...
- Muito feliz Sofia, fizemos imensos progressos... imensos - a voz tornava-se lenta, pastelosa... Sofia focou; ao seu lado um rosto familiar - João? - sussurou incrédula - És tu? És mesmo tu? - Era ele? Seria possivel ser mesmo ele? Ele que estava ali, com a sua voz suave, o seu tom temperado, o seu rosto reconfortante, ele que a tinha conhecido por ser seu psicólogo durante as sessões de apoio, com quem tinha quebrado todo o tipo de ética profissional, moral, até pessoal... Mas que interessava isso na altura? Ele que a conhecia melhor que ninguem, ele que sabia todos os seus fantasmas, todos os seus temores, ele que a acompanhou na recuperação depois daquele desastre a ter deixado eferma, deitada numa cama meses a fio, com dores constantes e engordado como se fosse um animal, ele que apesar de tudo isso não a tinha abandonado, ele em quem ela tinha depositado todas as esperanças ao longo de 3 anos maravilhosos em que acreditara no amor, em que sabia poder recuperar plenamente, por si própria mas mais importante ainda, por ele...
Ele que ao fim de tanto tempo desapareceu com uma estudante de medicina nova, magra, inteligente e irritantemente sensual, ele que destruiu numa noite o que tinha levado anos a contruir e que levara consigo toda a sua auto-estima, o seu futuro, o seu corpo, a sua fé na vida e em si própria... Ele estava ali, a falar com ela com o mesmo tom que a acalmou e seduziu, que lhe via directamente para dentro do corpo... Não era possivel, não podia ser...
Sofia esfregou devagar os olhos, João encontrava-se de pé, à distância, na penumbra. Sorria. Sorria com um sorriso alvo no seu rosto negro... Negro? Mas como? Como negro, que fazia ali aquele homem escondido nas sombras com os braços excessivamente grandes a fitá-la... longamente... e a sorrir... Sofia gritou! Em pânico soltou toda a sua alma pela garganta, pela boca, pelo corpo, esperneava no chão frio quando abriu os olhos e Pedro estava a agarrá-la. Sofia parou ofegante... olhou em volta como um animal enjaulado, estava no chão do quarto do hospital, um gato olhava para ela intrigado, na janela não estava ninguem, nenhum vulto para a assombrar, mas mais importante que isso, Pedro tinha voltado e agarrava-a nos braços...

polegar disse...

estreitava o abraço na esperança que o aperto quente e reconfortante a quisesse fazer voltar à realidade. à consciência. escorria-lhe suor pelos braços, frio. não sabia de quem era. estranha troca de fluidos.
parou no rosto desorientado de Sofia. a expressão aflita e perdida ia dando lugar lentamente a uma apatia apatetada. o cabelo em desalinho, suado, a pele brilhante, a bata desordenada, a curva de derrota nas costas. parecia-lhe que Sofia desistia. de lutar? ou do estranho pesadelo cujos gritos o haviam feito voltar atrás?
perguntou-se o que estava ali a fazer. se a mulher era gravemente descompensada, ele o que seria? ele, que se abraçava com força a uma desconhecida enlouquecida com ganas de a salvar. uma mulher sem sinais particulares exceptuando a estranha curvatura da coluna. ensandecida, com visões e achaques.
ela tremia agora. uma descarga de adrenalina, calculou. manteve-se em silêncio, deixando-a estremecer, primeiro com violência, depois apenas pequenos curtos-circuitos espaçados. os pensamentos corriam-lhe os olhos mais depressa do que conseguia apanhá-los. apenas uma constante.
a pouco e pouco o olhar de Sofia parecia ganhar uma vivacidade, uma consciência simples de lugar, um reconhecimento das paredes brancas. olhou-o.
- voltaste.
- sim.
- não queres saber o que se passou?
- não.
- porquê?
- o que vi bastou-me.
- então porque é que ainda me abraças?
- porque precisas.

MPR disse...

-Porque continuas aqui?
-Não sei...
-Mandei-te sair...
-Eu sei...
-Não saiste...
Pedro riu-se.
-Parece-me evidente... - disse sem a largar.
-Porque é que insistes em mim? Não me conheces, nunca me viste, não sabes quem sou...
-Sei o que vejo - responde Pedro e pára um segundo - Sei que foges, provavelmente há muito tempo, sei que não te lembras de ti mesma e que tens medo que outros se lembrem, sei que precisas de quem te redescubra.
-E vais ser tu?
-Sem promessas...
Sofia sorriu - sem promessas - sussurrou.
-E se começássemos de novo? - perguntou Pedro
Sofia parecia ter entregue naquele abraço toda a sua resistência, não queria mais fugir, não queria mais lutar, não queria mais ter medo de si mesma.
-Parece-me bem...
-Nunca me chegaste a dizer o que achavas do livro...
Sofia voltou a sorrir e com os olhos lacrimejantes encostou a cabeça ao peito de Pedro...

polegar disse...

:)
I'm a sucker for happy endings...
deixá-los estar...