quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Na tua cara


"A lua banhava as pedras soltas da calçada com uma luz azul fria. Nada mexia nas sombras da rua, nos recantos escondidos onde alma alguma se aventurava. A ruína crescia como um punho fechado em torno do pico escarpado de uma montanha perdida numa cordilheira distante. Apenas o som do vento se aventurava a rumar àquelas paragens, fazendo um concerto surdo ao qual se sobrepunha o leve rumorejar das folhas secas. Em baixo da enorme escadaria que contornava aquilo que foi em tempos um imponente castelo, uma sombra contorceu-se. Uma mão espalmada como uma estrela de cinco pontas ficou visível ao luar. Catarina levantou-se a custo. O corpo coberto de chagas, as roupas esfarrapadas, o cabelo revolto, restos de sangue seco espalhados pela cara como se de uma pintura tribal se tratasse. Pé ante pé ela foi subindo, o rosto num esgar, um misto de dor e raiva, numa mão tinha presa uma adaga, e Catarina agarrava-se a ela como se disso dependesse a sua vida. Não parava, nem pelo cansaço, nem pela dor, nem pela luz que lhe destapava as sombras, sabia estar sozinha, sabia o que tinha que fazer. No topo daquele lugar maldito estava uma mesa de mármore, um imponente altar que se mantinha orgulhoso no meio dos escombros. Deitado nele, perdido no seu sono, um homem com uma armadura gasta e uma capa rasgada pelo tempo e pela espada, repousava. Apesar do aspecto cansado, das roupas gastas, adivinhava-se nele uma nobreza, um certo ar etéreo, uma beleza fascinante que sobrevivia ao tempo e à fadiga. Era um homem duro, mas ainda assim angelical. Catarina aproximou-se e parou por um momento a observá-lo. Num movimento brusco e com o rosto inexpressivo cortou-lhe a garganta. Ele abriu os olhos com a dor e olhou-a incrédulo, como se visse alguém para alem da tumba. Catarina fitou-o quieta enquanto ele morria. Deixou cair a adaga e com o último suspiro do moribundo afastou-se olhando o mundo à sua volta. Até onde a vista alcançava estendiam-se picos escarpados de montanhas, um sem fim de cinzento sem vida, de rocha aguçada e perpétuos abismos. Catarina caiu no chão desamparada, como se o peso de uma vida se abatesse de súbito sobre ela. Agarrando os joelhos chorou convulsivamente. A sua vingança estava consumada, aquele homem estava morto, aquele homem que a abandonou aos bichos, que a deixou inanimada, cortada, ferida, que a tentou destruir, aquele homem não existia mais. E com ele desaparecia o único amor da sua vida, a quem dedicara mais que corpo, mais que alma, esperança e futuro. A única coisa que lhe restava era aquele abismo escarpado, aquele mundo de pedra vazia e nada mais."

Há duas semanas tivemos um exercício em que, no final da aula, ao som de música, tinhamos que olhar para os colegas, escolher um e a partir dele criar um personagem. Fechar os olhos, e desenhar uma pequena narrativa com esse personagem (e não com o colega). Ontem foi feito o trabalho sobre essa historia. Uma cópia entregue ao Bruno (quiçá se não servirão de base para a peça final) e depois trabalho sensorial. Recriação física do espaço e do personagem, para culminar numa improvisação, guiada pelo Bruno, em que tivemos que integrar outros colegas no nosso espaço, no nosso mundo, sem nunca o impormos, interagir, adaptar, reagir, contracenar no fundo, sem sermos autistas, sem nos virarmos para nós próprios, e estando sempre atentos ao outro, sem nunca perdermos o nosso próprio personagem...

Sem dúvida que prefiro as aulas de quarta feira, apesar de, pelo tamanho da turma, nunca se conseguir fazer um exercicio muito longo, para dar tempo a todos.
Pausa nas aulas para o Carnaval e daqui a sete dias há mais...

1 comentário:

Mary Lamb disse...

Essas descrições fazem-me ter vontade de estar sempre lá.