quarta-feira, novembro 23, 2005

Silvestre


Não sei que idade tinha, mas era criança, muito criança, demasiado criança para a obra. Com ele vi e revi pela primeira vez um filme até à exaustão, usando-o como um livro em que saltamos para o capítulo favorito, ou um disco em que já só ouvimos as músicas predilectas. Já não me lembrava dele. Não conseguia contar nada da sua história, mas tinha-o como muito presente, muito próximo.
Ontem, na Cinemateca, às 19h de um dia de semana, durante a transmissão em canal aberto de um jogo do Benfica, passou pela segunda vez este mês “Silvestre”, um dos filmes míticos de João César Monteiro. Estavam 30 pessoas na sala, e dúvido que muitas sessões do dito cinema comercial tivessem, naquele dia áquela hora, tanta gente.
Não conseguia lembrar-me da história, mas enquanto, enterrado na cadeira, revia das imagens mais marcantes da minha infância, percebi que nunca tinha sabido a história. Na verdade era demasiado criança, não conseguia compreender as variadissimas conotações sexuais, a pureza da virgindade, a linguagem arcaica, a iconografia católica, a ligação operática, as metáforas várias e os diálogos muitas vezes de uma maldade quase pérfida. Não compreendia nada disso, mas via as imagens quentes, a cenografia teatral, o Bem e o Mal na sua forma mais directa, combates e dragões, lanças e espadas, e deixava-me fascinar pelas cores, os sons, os ambientes, embalava-me o que de mais elementar se encontrava na obra de um génio a caminho da loucura.Revendo o filme à distância de 24 anos da sua produção nota-se algum envelhecimento, nota-se principalmente o cabotinismo crónico de alguns dos actores, mas mantem-se a irreverência experimental e (apesar de parecer uma contradição) clássica nas temáticas e até por vezes na forma. Nesta revisita trouxe comigo o olhar marcado e perturbante de Luis Miguel Cintra, a beleza alva de Maria de Medeiros (na sua pimeira aparição no cinema) e o hedonismo infantil de Jorge Silva Melo. Trouxe memórias, emoções e a força pungente e imperfeita do Cinema.

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