segunda-feira, outubro 03, 2005

O dia do eclipse


Hoje acordei cedo, era o dia do eclipse! Maravilha das maravilhas, nunca vista em Portugal nas últimas décadas. Saí de casa carregado de expectativa, mas antes de chegar ao carro um canguru saltitante apareceu-me à frente e apertou-me a mão. Tinha força o desgraçado e quis ficar à conversa sem me soltar. Falou-me do tempo, da vida, e da filha que apesar de ainda andar na bolsa já estava à espera de cria. Quando me deixou a mão doia-me. Fui para o carro e tentei conduzir, mas as dores não ajudavam. Farta da minha lentidão e inépcia, o meu carro (que é uma mulher e chama-se Fábia) resolveu tomar o destino nas suas mãos e conduziu-me pelas ruas da cidade. Que caminhos eram aqueles que nunca conheci? As palavras de intervenção estavam escritas nas paredes, as mulheres e os homens dançavam ao som de música que eu não ouvia. Pensei, o mundo endoideceu e vou chegar atrasado! Parei à beira de um jardim sem árvores, nem relva, nem arbustos, nem flores, mas era um jardim, e o mais belo que já vi. As pessoas passeavam em extâse com um perfume que não conheciam e na verdade não podiam sentir. Ali me deixei ficar absorto a sonhar com a janela de minha casa. Da janela da minha casa nada se vê porque tem um muro de andaime que tudo tapa. Saltei para lá e subi até onde conseguia, olhei em baixo a cidade de gente que se acotovela e atropela numa busca vã de algo que não encontra. Todos à exepção de uma rapariga de olhos escuros e sorriso largo que olhava para mim ao longe e me acenava. Ela saltava descalça pelos muros e paredes sussurando-me segredos que nunca concretizou e planos secretos que me fizeram sentir. Sentir o quê? Não sei, apenas sentir, que já é um estado melhor que não sentir. O Não-Sentir é o vazio da alma, é a morte que se aproxima. E eu sentia. O Sol piscou-me o olho, como um desenho animado e percebi que era tarde. Olhei para o meu destino e vi que lá chegava com duas passadas! Enchi-me de coragem e saltei mas de repente ficou escuro como o breu e vazio como o infinito. Fiquei perdido e desorientado, senti-me cair desamparado mas nunca mais sentia o chão. Na verdade o escuro era tal que até o chão perdeu a noção do seu sítio, do seu lugar, e dei por mim a flutuar ao lado dele. Baixo era cima e esquerda era direita. Não sabia se fazia o pino ou se estava sentado de cócoras. Foi aí que a Lua saiu de frente do Sol e tudo, de repente, se endireitou nas posições devidas. Dei por mim estatelado no cimento. A rapariga olhava agora para mim empoleirada nos andaimes dos quais eu tinha caido. Estava presa por uma mão e rodopiava feliz. Eu queria falar com ela, mas um relógio gigante com azia atropelou-me e prendeu-me com o ponteiro dos minutos. Avançou como o vento por entre os carros que não se desviavam apesar dos meus gritos. Pensei realmente que ia morrer. E enquanto isso o relógio só me falava de projectos, de futuro, de responsabilidade, dívidas e hipotecas. Largou-me sem apelo nem agravo à porta do escritório. Limpei a poeira de mim, que caia no chão com pequeninos gritos estridentes. Entrei hesitante. As portas abriram-se com os seus dentes afiados e, por momentos, julguei que me iam morder. Passei incólume e subi ao oitavo andar. Sentei-me em frente ao computador. O eclipse já passou, as paredes estão no sitio e está tudo na mesma.
É segunda-feira e não há nada para contar.
Espero que, quando sair daqui, a rapariga de olhos escuros e sorriso largo ainda esteja dançando à minha espera...

4 comentários:

Mary Mary disse...

Rapariga de olhos escuros e sorriso largo percebi!
Carro Fábia também percebi!
Eclipse vi e percebi!
Agora o resto, tenho que ler mais uma vez para perceber... :P
Jardim sem nada? Pronto, há malucos para tudo... :P

o (grande) autor disse...

mas que grande moca, sim senhor...

Mary Mary disse...

É assim como eu vejo o texto depois de o ter lido com mais calma. Dia normal sem nada para contar. Mas com um eclipse por sinal até bonito. E se durante o eclipse o mundo se virasse?
Quando caíste, passaste pela sensação de morrer, a rapariga para mim representa a vida. A esperança de a encontrar quando saíres do emprego. A vida que existe para além disso.
Durante um fenómeno da natureza que podia ser interpretado como estando perto da morte. Em que o dia de repente se torna noite. A vida de repente se torna a morte.
Enfim, a minha imaginação deu para isto...

air disse...

O real problema é que a lua não se atravessa no caminho do sol sem consequências. Aparentemente do alto de um oitavo andar envidraçado, a direita voltara à direita para dar à esquerda o seu lugar. E no entanto, para os mais atentos (como os cangurús bem educados, os carros com personalidade e as raparigas empoleiradas em andaimes) o mundo continuava ao contrário. Será que ninguém se apercebe que a gravidade hoje puxa para cima?