sábado, setembro 10, 2005

Perdidos na vida...


Por vezes há personagens que se atravessam à nossa frente e nos captam a atenção. Ontem antes de entrar para a cinemateca fui tomar um café ao pé do S. Jorge. Estava em pé devido à pressa. Cambaleante, entrou um homem que se pôs ao meu lado. Tresandava a vinho e lixo. Pediu uma bica em chávena escaldada e tinha um livro de bolso na mão que pousou em cima do balcão. Estranhei que um tipico bêbado de Lisboa andasse com um livro atrás. Espreitei para o título era a Biblia Sagrada. Nem sequer tinha visto uma biblia sem ser com uma encadernação dura. O homem balbuciou qualquer coisa imperceptivel. O empregado com um excesso de zelo lamentável disse-lhe com maus modos enquanto pousava a bica à sua frente: "O senhor entrou sozinho e fica sozinho! Não se dirige aos clientes!" " Mas o que foi que eu disse?" - perguntou atónito o homem. Por trás do balcão chegou um outro empregado que perguntou o que se passava e olhando para a chávena interrogou o colega para quem era. Este respondeu que era para o velho. Sem saber muito bem porquê o bêbado respondeu baixinho "Mas se quiser leve lá o café...". Ouvindo isto o empregado mais velho tirou a chávena da frente e disse "Então pronto não bebe e acabou-se!" O mais novo aproveitou a dica e gritando pôs o homem na rua. Quando saí apressado passei pelo homem. Estava parado à porta do café. Tinha um saco numa mão. Uma biblia de bolso na outra. Estava sozinho a tresandar a vinho e lixo. Olhava para o chão, quieto, com o olhar perdido. Procurava a salvação, mas não a encontrou...
Quando vou para o emprego passo sempre por um homem que deve ter cerca de 60 anos. Vive ali ao pé do Campo Pequeno decerto. Todos os dias tem roupa lavada, a cara limpa e as unhas cortadas. Costuma vestir uns calções pelo joelho, boné de pala, polo por dentro das calças e suspensórios. Umas sandálias e meias brancas. Pelo aspecto asseado não está sozinho na vida. Tem um olhar vago. Deambula por aquelas ruas sem sentido, sem destino. Olha para a cara das pessoas que passam com uma expressão longínqua. Fica a olhar para os teus olhos por momentos esperançado, depois baixa a cabeça triste e continua o seu caminho até aos próximo olhar que se cruze no seu. Creio que procura quem o reconheça.
Às vezes há personagens que passam por nós perdidos na vida...

7 comentários:

Mary Mary disse...

Realmente há mesmo daquelas histórias que a pessoa não fica indiferente...
Tudo o que esse homem precisava era de uma oportunidade na vida e devido ao seu aspecto ninguém lhe dá... É triste ver pessoas assim, ainda mais triste é ver empregados assim...
Tanta injustiça neste momento que podia ser evitada, um café poderia ser a alegria desse homem naquele dia e nem isso lhe deram...

Pastilhas Júnior disse...

Concordo plenamente.
Mas, como sabem, vivemos numa sociedade consumista e de imagem e tudo o que não se enquadra é colocado de parte. Infelizmente é esta a crua realidade.
Não me parece que estivesse só. Posso não ser muito religioso, mas parece-me que a "fé" pode ser uma óptima companhia, seja qual for o credo.
Enquanto, no segundo caso, já temos a "religião saudosista do apreço/reconhecimento global". Não estamos, nem nunca estaremos sós, digo-o apenas como sociedade. Deve-se tentar diminuir as distâncias entre tudo, unificar o mundo. Sei o grau de dificuldade exigido por esta minha ideia, mas também me parece, que caminhamos nesse sentido, nessa salvação.

Anónimo disse...

Mary, isto não é uma história, é um momento e, como tal nós romanceamos como queremos. Este senhor,parece-me, não queria uma oportunidade. Queria um café!... mendigos e excluidos há desde sempre, não há geograficamente nem históricamente, tecido social que não os tenha. Não é um fenómeno da sociedade de imagem. Mas até na pobreza há um sentido de dignidade humana que não se deve perder. Quando alguém a perde, perde o respeito por si próprio. Se não tem cuidados básicos de higiéne, é muito dificil exigir a outros que o respeitem. ...Havia um senhor perto de minha casa que morava na rua e lavava a sua roupa num chafariz, percebia-se que não tinha casa, mas nunca tinha mau aspecto. Aquele senhor nunca foi escorraçado de lado nenhum.

Mary Mary disse...

Marta lamento discordar contigo... Era um simples café numa avenida e não o sítio mais chique de Lisboa! Se calhar até tinha baratas na cozinha! Não sei...
Mas garanto-te que se tivesse um café e aparecesse um homem assim, eu serviria o café. Há bêbados e mendigos por Lisboa e por todo o mundo, é o mal desta sociedade ser como é...
Não sabes a vida que o homem teve, o sofrimento que teve de passar... Absolutamente nada... E não é pelo seu mau aspecto que deve ser tratado como um cão, se bem que os cães são mais bem tratados do que isto...
Um lavava a roupa no chafariz e o outro não e por isso têm que ser tratados de maneira diferente? Não creio...
Vejo-me a defender um infeliz que nunca vi na vida mas é como o Pastilhas diz, devemos tentar salvar esta sociedade do consumismo profundo e não ficar de pé atrás só porque não lavava a roupa no chafariz...

Anónimo disse...

Hoje quero dizer o seguinte:
1)vim ler o teu blog mais uma vez!!!
2)na segunda feira vi um filme excelente "Blue Velvet" as you know :=)
3)e durante a semana vi dois maravilhosos filmes La Mala Educacion de Pedro Almodovar; Shortcuts de Robert Altman que ainda não tinha tido oportunidade de ver.
Que comentários tens a fazer sobre isto? ;=P

MPR disse...

Bom... não tem puto a ver com o post!
Viste o Blue Velvet? A sério? Onde? Com quem?
O Mala Educaccion é muito interessante, um belo Almodovar desta sua nova fase mais séria e preocupada com assuntos controversos (como sempre).
O Shortcuts vi uma ves e honestamente... mal me lembro...

Anónimo disse...

É sem dúvida uma história muito triste... :(
E concordo com a Mary e o Pastilhas... :)